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1968 no Espelho

Galeria Valu Oria

São Paulo, SP

2007

1968 no Espelho

Recuperamos o passado pelos mais diversos motivos. Para lembrar de familiares e amigos que já se foram, para transmitir um pouco do que somos aos nossos filhos, ou simplesmente para construir, traçar e retraçar as bordas de nossas identidades. Afinal somos constructos frágeis, feitos de um emaranhado de memória e corpo. Como escreveu o filósofo Jean Améry, “ninguém pode tornar-se aquilo que ele não pode encontrar nas suas memórias.” Mas se hoje fala-se muito de memória é porque os museus, arquivos e livros parecem querer suplementar a nossa demanda de espaços familiares, próprios, em um mundo marcado cada vez mais pelos deslocamentos, pelo nomadismo e pela desaparição dos locais em que crescemos e que poderiam embalar nossas recordações. As obras de Fúlvia Molina reunidas nesta exposição remetem antes de mais nada a essa busca de territórios habitáveis que caracteriza as novas poéticas da memória.

 

Mas o visitante da exposição não deve confundir memória com melancolia. Os trabalhos de Fúlvia, já pela sua forma, apontam para uma tensão entre o passado e o presente. Não se trata de “busca do tempo perdido”, mas antes de se pensar o passado aqui e agora. Olhemos as obras: caixas acrílicas com fotos de baile de debutante dos anos 1950 e sobretudo da década de 60. As fotos estão impressas em folhas transparentes de vinil e são sobrepostas, dando uma impressão de tridimensionalidade. A foto posta sobre outra foto (idêntica ou com mínimas variantes) é recurvada e ambas são acopladas a placas acrílicas. O efeito final é de uma imagem com volume, que gera uma impressão de movimento. Dois grandes cilindros de vinil também reproduzem cenas daqueles bailes. 

Estas festas eram o segundo maior evento social dos clubes (sobretudo no interior, mas não só lá) depois das festas de ano novo. O “debut” das moçoilas significava um importante rito de passagem. Oficialmente apenas então elas se tornavam mulheres. Não por acaso nas fotos estas mulheres aparecem como verdadeiros embrulhos de presente e os homens – viris com seus bigodes aparados – colocam-se em posição de caça, prontos para o bote.

Estas fotos tornaram-se documentos de um ritual que encerrava em si não apenas alegrias e sonhos, mas também algo de terrorífico, algo sacrificial, que marca todo evento iniciático. A separação territorial entre homens e mulheres e o fato de muitos corpos estarem nas fotos “sem cabeça”, porque estas ficaram fora do enquadramento, são apenas duas das marcas desta violência contida nestas festas, tal como as vemos nas fotos selecionadas por Fúlvia para compor seu trabalho.

Mas estes rituais extinguiram-se junto com o tipo de fotografia que vemos aqui: analógica e em preto e branco. Ao transpor estas fotos para o vinil elas adquiriram um caráter ainda mais fantasmático do que as fotos costumam ter, enquanto documentos de uma cena que deverá “desaparecer”. Entre nós e estas fotos ocorreu a “liberação” das mulheres tanto da educação como dos papéis que estavam intimamente relacionados ao baile de debutante. Ao mesmo tempo, a fotografia passou para a era digital. Agora pensamos com e a partir de computadores. 

Fúlvia desdobra seu trabalho artístico e de memória para além da releitura dos papéis sexuais. Vale à pena ler esta exposição no contexto de seus trabalhos anteriores, com destaque para os apresentados na mostra “MariaAntônia/MemóriaAntônia Janelas da Memória”, de 2003. Lá também encontramos estes “cilindros da memória”, mas os fotografados então eram alguns de seus colegasdesaparecidosdurante a repressão aos opositores da ditadura. Como conta a própria artista, algumas das debutantes desta exposição na Valu Oria, que agora vemos, também se tornaram parte destes opositores que enfrentaram a ditadura e seu aparelho de repressão. Neste sentido, percebemos que Fúlvia também joga com o universo (na aparência) idílico destas fotos e com o futuro que depois jogou estas “meninas” no olho do furacão da política. A violência contida na festa, depois se desdobrou na violência da grande política. Ao emoldurar estas energias pulsionais e políticas em “caixas acrílicas” e cilindros Fúlvia apresenta para nós um incrível teatro de emoções e da história. O volumeque ela dá ao espaço bidimensional das fotos tem também este sentido. Já o movimentodas imagens indicam que a cada momento espreitamos o passado com novos olhos.

Márcio Seligmann-Silva

Professor titular de Teoria Literária

Instituto de Estudos da Linguagem, IEL 

Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP

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